quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Das grandes e pequenas mortes. . .


O primeiro contato que eu tive com o conceito cristão de morte aconteceu quando peguei um livro ilustrado da minha irmã. Eu não devia ter mais que cinco ou seis anos (meu avô materno já havia morrido, mas não me lembro de ter sentido a perda, senti apenas falta dos meus pais que nos deixaram no apartamento da vizinha). Nesse livro havia uma passagem ilustrada com um cortejo: um dia nublado, uma fila de pessoas que não passavam de sombras muito enegrecidas seguindo um caixão igualmente negro por uma colina. Ali eu entendi que a morte era soturna, moldada em sombras, um castigo imposto por algo maior. Anos mais tarde fui me encantando pelo que antes me parecia tão assustador e fascinante. Quando eu visitava cidades históricas com o meu pai insistia em conhecer os cemitérios (isso sempre pareceu divertir o meu velho), ver as virgens de pedra, ler os epitáfios. Eu ainda estava no terreno da morte cristã, mas ali já não havia peso - só havia a saudade dos vivos que viam seus mortos seguirem um caminho que para eles era inescrutável. Quando uma grande amiga perdeu o seu pai ela me ligou no trabalho, saí de lá correndo, comprei um maço de cigarros (senti que ela precisava, e eu estava certo) e fui lá oferecer a única coisa que realmente podemos ofertar aos que sentem a morte próxima: afago. Porque ela é irremediável, imponderável - a morte, tal como a vida, não pede passagem. Ela apenas se apresenta no seu devido momento e diz "Venha, estou aqui por você". No enterro do pai dessa amiga ela me sussurrou nos ouvidos "Daher, a morte não é a Morte do Neil Gaiman", eu respondi que era sim, mas que ela não precisava pensar nisso naquele momento, que devia sentir a dor. Porque a dor é iminente e tentar preencher a dor com falsa alegria é tolice. A vida é feita de grandes mortes, e pequenas também. Rompimentos, transformações, o susto que é sair de um terreno seguro para um terreno nunca dantes adentrado... as pequenas mortes se espalham pela vida e potencializam a caminhada, nos lembram da nossa própria efemeridade, nos obrigam a exercitar a difícil arte do desapego. Desapegar-se pode ser tão doloroso, é isso que eu senti quando - tempos depois da morte do pai dessa amiga -, vi uma tampa de caixão se fechando sobre a minha vó que eu tanto amo. E ali eu chorei, e pensei que nunca mais veria minha avó cozinhando com sua touquinha de meia, nunca mais ouviria ela dizendo para mim "ô pecadôr!" quando eu dissesse algo que Maria Mãe de Deus achasse politicamente incorreto. Eu chorei por tudo aquilo que eu não mais teria dela, esquecendo - nesse momento cego e extremamente importante da dor - que tudo aquilo que eu TIVE dela é meu, e isso sobrevive até hoje. Quando eu uso as camisas ou os óculos do meu avô sinto um pedacinho dele ali, mas esses óculos devem sentir uma certa revolta porque nunca mais assistiram a uma partida do Atlético, só assistem filmes e só lêem estranhezas. Quando saíamos do cemitério naquela tarde em que minha avó foi enterrada meu pai relembrava histórias e sorria. Eu disse a ele "isso é o que fica, pai" e ele fez que sim. Nas pequenas mortes eu vejo o mesmo processo, os mesmos sentimentos: a negação que faz com que relutemos que aquilo foi embora, a dor pulsante que nos cega ao ponto de acreditarmos que nunca mais sentiremos alegria, que não seremos iguais (e não seremos, goste você ou não), a ausência daquilo que foi tão significativo e trouxe tanto sentido... Não. Não consigo temer a morte, não consigo imaginar a vida sem ela. São a mesma, a mesma moeda que jogada para o alto reflete luz e sombras. Aceitar as mortes é aceitar as dificuldades do viver, do seguir. E navegar é impreciso, que me desculpe o grande Pessoa.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Da busca pelo tal za za zu. . .


Za za zu : Borboletas no estômago; frio no estômago; euforia romântica

Hoje associamos a idéia de paixão ao coração. No período elizabetano associavam ao fígado. Eu peço licença para associar ao estômago... Quem não ama aquela sensação de estar congelado diante de alguém que de um minuto ao outro parece se destacar de todas as criaturas por quem você se interessou? Quem não deseja manter essa mesma sensação cristalizada, antes que ela desapareça na velocidade em que surgiu? Lembro dessa cena de um seriado: um balão vermelho em uma noite, voando por entre prédios de uma grande cidade; ali refletiam sobre a necessidade que nós temos em encontrar O grande amor, a outra metade, a tampa da panela, culminando em uma espécie de "moral da história": alma gêmea de cu é rola! O mais difícil é amar o "você" que você enxerga no espelho. Me peguei relembrando um aniversário meu de anos atrás, em que ganhei um balão vermelho e caminhei com ele pela avenida vazia - a solidão acariciava, mas existia ali o desejo pelo za za zu. Ontem vi um balão vermelho sendo puxado num bloquinho de carnaval - Amélie e eu dançávamos, e ríamos de nossas últimas incursões no campo da atração. Rindo pra não chorar? Quase não choro, ao contrário dela. Mas rir de desgraça é como dizer "eu vou morrer se fulano(a) não me amar" - vai nada, seu trouxa! Não faz diferença, mas às vezes é tão bom dizer. Ora penso que essa idéia de amor romântico nunca esteve tão em alta, ora penso que nunca esteve tão ultrapassada. Me divirto quando penso que há algumas décadas esse conceito podia ser usado com mais intensidade; as pessoas não dispunham de redes sociais e toda essa parafernália tecnológica para conhecer alguém. Se os pombinhos se conhecessem por acaso trocariam número de telefone (fixo), ou cartas?, aguardariam ansiosamente um encontro (cineminha, jantar, passeio no parque). Só então se conheceriam de fato, descobrindo aos poucos as nuances do outro, suas peculiaridades, seus gostos, os detalhes dos gestos - tudo isso envolto pelo za za zu. Talvez eu esteja fantasiando uma realidade que nunca foi a minha (a probabilidade de isso acontecer é imensa, eu sei), mas não deixa de ser curioso que nesse mundo onde as possibilidades são incontáveis encontrar alguém que mereça o rótulo de "especial" e provoque esse frio no estômago parece tão difícil, quando deveria ser exatamente o oposto. Encontrar sexo (bom ou não) é mais fácil que entrar na Obra depois de meia-noite. Mais fácil ainda é descobrir tudo a respeito de quem te interessa à primeira vista [basta adicionar fulano(a) no Facebook e até sua árvore genealógica vai estar lá]. Parece simples, não? "Oi, te vi em tal lugar, resolvi te adicionar. Topa uma cerveja? Oi, prazer. Radiohead? Acho bom (vi que você gosta no seu perfil, mas você não precisa saber disso). Jarmusch? Adoro! Ele é tão autoral..." E assim vamos pulando essas etapas que supostamente deveriam ser gradativas e o que deveria ser intenso se torna banal - a ansiedade do za za zu é quase que automaticamente substituída por uma urgência, já que algo acontece nesse percurso e quando percebemos estamos selecionando e sendo selecionados como naqueles quadros de namoro do Silvio Santos. "Eu quero alguém que leia Proust, que goste de cinema de arte, que goste de rock progressivo e tenha tatuagem na bunda, que tal?" A procura se torna caça, e o ser "especial" passa de sujeito a simples objeto, e caso algum pré-requisito não satisfaça, qual o problema? É só voltar para o Facebook ou para a baladinha da semana e outro ser "especial" vai estar lá me esperando. Talvez a grande pergunta aqui seja: o que buscamos quando pensamos/desejamos o tal za za zu? Até onde estamos dispostos (e tão importante quanto: até onde o outro está disposto?) a enxergar quem se apresenta com esse propósito? Eu anseio por reciprocidade... encontrar alguém que me faça sentir frio no estômago e em quem eu provoque o mesmo efeito. Amélie está certa quando me diz que dá medo toda essa busca (a falta de reciprocidade assusta, machuca, mexe na maneira como nos vemos, atinge nossos pontos mais frágeis). Mas acho que estou certo quando digo que o jeito é se arriscar, continuar procurando - ou como ela sabiamente disse mais tarde: "Melhor mesmo é não procurar." Procurando ou não, talvez devamos complicar menos, sendo mais íntegros com aqueles que se apresentam invadidos pelo za za zu. De uma coisa eu sei: se peixe morre pela boca eu quero é morrer pelo estômago...

Do início. . .


Cheguei em casa, tomei um banho - passando minutos sentado no azulejo frio, deixando que a água caísse com um pouco mais de força. Fiz uma salada de improviso (tenho tomado gosto por saladas, e não estou me referindo às do Mc Donald's, que fique claro!), tomei minha dose diária de Rohypnol, acendi um cigarro, acariciei os pêlos de uma sonolenta Lulu Harvey - ela abanou o rabo, apontando para o cobertor como quem diz "não quero carinho, idiota... quero conforto". Fechei os olhos, esperei por Morpheus, mas ele não veio. Algo rondava os meus pensamentos, algo distraía o meu foco. Entendi a razão e vim correndo criar esse espaço - espaço de dúvidas, indagações; espaço de devaneio e epifanias que de tão ínfimas decidi nomeá-las despifanias. Me veio a necessidade de externalizar aquilo que se passa aqui dentro, por trás das retinas - a inquietação que me agita a alma de sonhador cronicamente insatisfeito... necessidade de compartilhar com os que eu amo ou talvez apenas com os incontáveis bits e bytes a sede da procura. Tenho sede, e água nunca me bastou. Meus passos são inquietos, minhas mãos também. Que minhas despifanias tragam algum afago. As dúvidas habitam os meus bolsos...

E os seus?